quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O fascínio do giz branco

O regresso, depois de escassos dias de interrupção, foi bom. Admito: tinha saudades. Muitas saudades, o que até parece estranho, em tão poucos dias. Lembrei-me de, há muito tempo, ter escrito sobre a forma como "respiro" na escola.


Cheguei pela mão de minha mãe. Antes de me deixar, ela compôs-me o cabelo, alisou a minha bata-branca-novinha-em-folha num gesto meigo e saiu. Imagino – imagino apenas, que uma menina de seis anos não observa essas coisas – que estivesse ligeiramente emocionada. Até então, enquanto ela e meu pai trabalhavam e meus irmãos frequentaram por algum tempo o jardim-de-infância, eu estivera sempre em casa, com a avó. Sentei-me na última carteira. Quieta. Calada. Bem comportada, como a mãe recomendara. Quem sabe, assustada com aquele mundo de novidades que – não o sabia ainda, como poderia saber? – iria determinar a minha vida, tornar-se um destino, se isso existe.

A sala de aula, enorme, estava cheia de meninas de bata branca e algumas conversavam entre si. Volta e meia, uma senhora muito pequenina vinha ver se tudo corria bem. Era a Menina Isabelinha, a nossa contínua, e surge tão nitidamente na minha memória que agora mesmo a vejo limpar as lágrimas às mais choronas, refrear os ânimos das mais atrevidas, olhar por nós como se não houvesse outro mundo.

Quando a minha professora chegou, atravessou a sala em silêncio. Muito alta e já velha – achei. E digo achei porque, bem feitas as contas, só a minha pequenez o diria assim. A Sr.ª D.ª Judite leccionou ainda tantos anos que não podia ser velha nesse meu primeiro dia de aulas, um 7 de Outubro luminoso numa cidadezinha do interior.

Nesse tempo ainda se fazia exame na 4.ª classe. Meu pai acompanhou-me no dia das provas orais. Curiosamente – e só agora alinho assim estas memórias – entrei com a mãe, saí com o pai, e não me recordo de, entre uma coisa e outra, algum deles me ter ido levar ou buscar. Tive sempre, no caminho, a companhia de algum dos meus irmãos.

Durante esses quatro anos fui feliz. Gosto ainda da imagem que tenho da minha professora: rosto sereno, cabelo grisalho, a voz clara, segura. Lembro-me da textura da minha pasta castanha, do frio do fecho de metal, do pesponto do bolso da bata – quantas vezes aí terei passeado os dedos nervosos, sob a carteira? A Alda, a Lina, a Helena Gomes e a Joaquina foram as minhas companheiras de carteira. A Cristina Rapoula emprestava-me os lápis de cera, ao tempo os únicos que eu conhecia. A Cristina Lopes Dias atiçava os cães da avó às colegas, mas poupou-me sempre a esse susto. Jogava às pedrinhas, à macaca, às estátuas e aos cinco cantinhos. Fazíamos coroas com as flores do pátio de recreio. As estagiárias ensinavam-nos muitas canções e dobragens em papel e no dia do exame ofereciam-nos rebuçados.

Tudo isto e muito mais que não sei dizer (como o cheiro e o burburinho dessa sala de aula), está comigo ainda, num misto de emoção e encantamento. Mas o verdadeiro fascínio da escola começou quando a Sr.ª D.ª Judite pegou no giz branco e riscou o quadro preto. Talvez tenha sido por isso que eu decidi:

Quando for grande quero ser professora.

E, se a dada altura me deixei seduzir por cartuchos de papel pardo e sacas de farinha e arroz, rebuçados de meio tostão contados aos pares e desejei ser merceeira... ou se mais tarde sonhei entregar-me à medicina, a verdade é que cedo me defini:

Quero ser professora.

E agora que alguns anos passaram sobre a minha estreia numa aldeia perdida entre pinheiros, pergunto-me: porque é que aqui estou? Há outras coisas que eu poderia, gostaria de fazer. Porque estou aqui? Porque cheguei aqui?

Gosto dos miúdos à minha volta? Quero ser para alguém uma Dona Judite? Foi a minha escola que me deixou o desejo de outra escola?

É esta a minha vocação?

E o que é a vocação?

Ah, não sei. Estou aqui porque sim: porque ainda me fascina o giz sobre o quadro preto. O cheiro de uma sala de aula. Os ruídos próprios de uma escola. Um ritmo interior que nos deixa desadequados noutros lugares.

Era disso que eu sentia já saudades no final das férias. Há uma respiração que só a escola me permite.

Publicado na Cartilha de Março de 1992

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