domingo, 4 de abril de 2010

Esta forma de passar pelas coisas ruins

Naquele ano, mais do que em qualquer outro, o primeiro dia de aulas foi muito especial para mim. Retomava o contacto com o grupo do ano anterior e, pela primeira vez, fazia-o na qualidade de quase-mãe. Sentia que ia ser diferente a minha relação com os miúdos, alterada profundamente por uma outra, a que se estabelecera já entre mim e o bebé. Haveria agora uma cumplicidade maior, uma ternura mais forte, uma vontade grande de os olhar nos olhos, de deixar que sentissem do lado de cá a mãe e me revelassem a verdade apenas pressentida do meu próprio filho.

Passada a habitual agitação da entrada, sentei-me para conversar com a minha gente. Logo, logo, o João Paulo, amigo de colo e ternurinhas, saltou do seu lugar e veio ao meu encontro.

− Ah, não, João! Fizeste 7 anos, estás um homem, és já muito grande para vir ao colo...

E ele, naquele jeito sempre risonho de ser:

− Eu estou grande, é? E o teu colo está mais pequeno!

Tive nesse momento a certeza de que tudo ia ser bom: estava gerada a nossa nova cumplicidade.

Chamaram-me, a seguir, para ir receber um aluno recém-chegado, transferido de um colégio. Foi então que conheci o Humberto. E também a mãe do Humberto, que, falando devagar e com forte sotaque algarvio, me contou em poucas palavras a longa história do seu menino de 8 anos.

− O Humberto chumbou no ano passado, tem tido muitos problemas. Teve um acidente aos 3 anos, ficou com este problema no olho... – eu olhei uma vez mais o pequenito, que, por detrás dos óculos escuros, escondia um olho esbranquiçado, enorme e saliente. A mãe continuava:

− Nunca mais pôde ter uma vida normal: já fez sete operações sem resultado nenhum. Não pode correr nem brincar à vontade, porque a tensão no olho aumenta logo, fica cheio de dores e tem que ficar na cama, às escuras. Tudo isto o tem afectado muito; entre as operações e os tratamentos, já fez catorze anestesias gerais, ressente-se disso e de vez em quando tem crises de amnésia. É uma criança meiga e cheia de vida, mas não pode dar largas à sua energia, tem dificuldade em aceitar a situação e fica nervoso. O meu filho é muito nervoso.

Virei-me para o Humberto, meio curiosa, meio assustada. Como iria ser a nossa vida em conjunto? Seríamos capazes de criar condições para que ele se desenvolvesse harmoniosamente, com aquele condicionalismo físico? Sentia que tinha ali um desafio. Teria que conseguir «agarrar» aquela criança. E teria que dar força a esta mãe. O bebé dava voltas e voltas, enquanto durou a nossa conversa, e isso para mim era como que um empurrão: «Precisas conseguir, mãe!». Não era apenas a questão de uma responsabilidade que me chegava por via profissional: era a solidariedade que se impunha. Para com uma criança que já fora um nó no ventre, como o que eu afagava então. Para com aquela mulher que ali estava diante de mim, entregando-me a voz da sua dor. Uma dor que, sentia-o, a dominava por inteiro. E parecia-me, no entanto, que era essa mesma dor que a mantinha de pé, que lhe dava força, sempre mais força. Por um filho, temos sempre mais força do que a que julgamos possuir.

Afinal, foi tudo mais fácil do que eu julgava. Tivemos, o Humberto e eu, a ajuda incondicional e espontânea do resto da turma. Todos aceitaram bem o Humberto e foram amigos, companheiros de folia, aquilo que ele precisava de encontrar. De vez em quando, um pouco de excesso nas brincadeiras levava-o a ficar em casa, repousando, mas, de uma maneira ou de outra, o Humberto evoluiu no sentido de uma vida como a de outro miúdo da sua idade. E deixou os óculos escuros.

Há algum tempo, a mãe veio ter comigo. Mais angustiada ainda, aterrorizada com a perspectiva de, em breve, o pequenito ter que extrair aquele olho. Mais do que a operação, o que a assustava era a forma como o filho a iria aceitar e ao período de adaptação. Durante algum tempo, ele não sabia desta decisão dos médicos. Até que um dia me disse:

− Senhora professora, vou ter que faltar um tempo. Vou fazer uma operação para tirar o olho.

Foi nesse dia que me contou outros pormenores:

− Eu tinha 3 anos e vi o meu irmão a brincar com uns amigos e pedi à minha mãe para ir ter com o meu irmão. A minha mãe disse que podia ir. Quando eu ia a atravessar a estrada, um menino atirou-me um tijolo. Demorei muito a chegar ao hospital e aí comecei a choramingar e o homem deu-me dois estalos. Depois foi a operação, e o olho foi mal cosido. Por isso fiquei assim. Mas agora vou fazer uma operação, que é a prótese, eu acho que vai ser bom para mim, porque depois eu não preciso preocupar-me com o meu olho…

Ouvia-o emocionada, admirada com a maturidade com que ele me falou das implicações de ter ou não ter a prótese, dos sonhos que espera realizar quando puder mexer-se à vontade no espaço. Digo no espaço, porque no tempo mexe-se ele à vontade. As crianças têm esta vantagem sobre nós, esta grande capacidade de adaptação a tudo o que é novo, esta forma de passar pelas coisas ruins com um pé já adiante, à procura do que está mais além.

Eu gosto do Humberto e dos outros garotos, trabalhamos e divertimo-nos à grande. Rimo-nos da cara do Humberto, corado, corado, quando lhe pergunto pela namorada.

− Eu vou brincar para a praceta, eu gosto da miúda e aos sábados encontro-me sempre com ela no baile.

DN Jovem, Maio 1988

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