domingo, 23 de maio de 2010

Noite II

Colado nas paredes estriadas

(que a Lua está cheia e

as persianas meio abertas)

navegas nas sombras repetidas

do meu quarto.


esqueço que Janeiro é frio

e que a noite entrou em nós:

estendo a mão para o telefone.

como se tivesses lugar-onde

e tempo para ser afluente

nesta minha obscuridade.


descubro que não há olhos

no teu rosto e

o frio é só

um limite na ponta dos dedos.


amanhã

dar-te-ei o longe o esquecimento

direi das sombras

as formas

e do silêncio

o bocejo

que o há-de quebrar.

CSC, Janeiro de 1986

sábado, 22 de maio de 2010

Noite I

e eu pergunto:

a noite tem mãos?


a noite vive – eu sei

sopra-me os cabelos na testa

grita alto as dores que me vivem

para eu não esquecer


depois estende a meu lado

o bolor com que me deito.


o Sol adiou o silêncio das gentes

e o orvalho foge das ervas dos meus atalhos.

ressequidos já os ecos dos meus sonhos.



e insisto:

que mãos vazias tem a noite

que nada me deu?!

CSC, Julho de 1985

segunda-feira, 17 de maio de 2010

"O Sorriso Enigmático do Javali", de António Manuel Venda


Gostaria de ter estado no sábado à tarde na Feira do Livro, no"stand" da Quetzal - estava lá António Manuel Venda. Queria cumprimentá-lo e comprar o seu novo livro. Mas não pude. Passei por lá mais tarde - foi mesmo pouco mais que uma passagem: estava frio. Fui directamente à Quetzal. Não, não sabiam se tinham o livro!
- Já está disponível online e deveria ser distribuído ontem nas livrarias - acrescentei.
- Só se for ali atrás, onde estão as novidades...
E estava, claro. A parede esquerda cheiinha de sorrisos, que é como quem diz, forrada com exemplares de "O Sorriso Enigmático do Javali". Um veio comigo.

Que agradável leitura! Que tranquilidade vivemos no montado, que inquietações partilhamos com o pequeno Tukie, de tão próximo nos sentarmos a seu lado. É uma imensa ternura pelo pequeno Tukie o que sentimos quando acaba por adormecer. Já a vínhamos experimentando desde o princípio, quando partilhamos a aventura e o espanto por detrás da objectiva da máquina fotográfica.

Deixemos descansar o pequeno Tukie, que ainda agora adormeceu. E a mãe e a bebé, que já dormiam antes de a rela vir dar corpo à última aventura.
Mas amanhã, teremos de nos juntar ao pequeno Tukie.
Dizer baixinho o nome da gineta.
Acreditar que o lagarto sabe desenhar.
Guardar um exército numa borboleta colorida.

Queremos saber tudo. O javali parou ou curou-se da doideira?
Porque tem o deputado apenas uma parte da cabeça?
Por que é que os políticos são mentirosos?

Ah, e quem dera deixar todas as cobras no estendal!

CSC,2010.05.16

sexta-feira, 14 de maio de 2010

As tuas mãos

Quis pegar-te mas mãos, tu não estavas e eu sabia, só não queria lembrar. Fui pondo rótulos bonitos em tudo quanto não sei dizer.

“Despem-se as árvores”, eu sei, “e foi o sol quem se perdeu”, mas descubro nesses dias as minhas ausências.

Sem pena.

“Dá-me as mãos”, diria, “e serei um pouco mais”.

Mas tudo isso é ainda medo e ainda pudor.

“Dá-me as mãos”. Sim, mas quero ser muito mais.

O meu tempo é este, tu sabes, não o posso perder. Hei-de um dia encontrar as palavras que agora não.

Virão ter comigo quando me olhares olhando por mim.

Setembro. 1993

terça-feira, 11 de maio de 2010

Luz inquieta

havia nas tuas palavras uma luz inquieta

que nas minhas mãos anoitecidas ganhou cor.


indefinidos ainda os teus olhos nos meus

guardarei no silêncio de cada manhã

o calor apenas pressentido dos gestos.


Lx, 17 de Março de 2004

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Quatro décadas - e eu só queria acordar




À memória de meu Pai, a quem doía tanto o Dia da Mãe.

À Inês, ao Vasco, à Marta, ao Filipe e ao Afonso, que não conheceram os Avós.

Era um pesadelo, mãe, e eu só queria acordar. Abria os olhos, estava muito calor e aquele quarto escuro não era o meu. O cheiro que chegava do jardim não era o cheiro de nossa casa. Ali, de meu só tinha o pequeno Rei Luís, adormecido há pouco, chorando, agarrado ao meu braço.

E onde estava o Tony? E onde estava o João?

Tudo tão diferente, mãe, mas o mais estranho de tudo era o silêncio. Porque no final dos nossos pesadelos nascia sempre a voz da mãe ou do pai para nos salvar de qualquer ser estranho que nos atormentasse. Naquela noite, o silêncio ganhava corpo, com forma e um odor que se adivinhava pestilento, por sobre o aroma forte das flores daquele jardim que não era nosso.

Quando amanheceu e comecei a acreditar que, finalmente, voltaríamos a casa para ouvir uma história – porque já era domingo, mãe –, um fato negro entrou, chegou junto de mim e falou. Tinha uma voz lenta e estranha, tão estranha e tão parecida com a do pai! Mas era um fato negro alto, muito mais alto que o pai e ainda mais magro e dizia coisas tão esquisitas como a voz que soava familiar:

̶ Queres ir ao funeral?

De repente, o cheiro do jardim asfixiou-me e o silêncio amarrou-me àquele fato negro que tinha a voz de meu pai.

Na sala ao lado, alguém falou e ouvi o meu Rei Luís:

̶ Quatro, tenho quatro anos.

Aconteceu uma coisa importante nesse dia, mãe, e ninguém deu por nada. Como é que só eu, tão pequena, percebi, ó mãe?! Nesse dia, Deus morreu.